Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas

Bem grandão

Doutor Saulo diz que para a minha idade estou ótima

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Meu clínico geral havia me recomendado doutor Saulo, um gastroenterologista de sua confiança. Estava em pé, bebendo água e me perguntando de onde saem todos os quadros horríveis que os médicos ostentam em suas salas de espera, quando doutor Saulo abriu a porta. Não tenho certeza, mas acho que cheguei a balbuciar "minha nossa".

Doutor Saulo, indo na contramão de tudo o que eu imaginava, devia ter no máximo uns 32 anos. Seus ombros, larguíssimos, me deram a sensação de que ao percorrê-los eu chegaria ao Rio de Janeiro. Ele sorriu (a boca de quem pertence a uma geração que fumou menos e tomou menos antibióticos, lábios viçosos cobertos de leve por um bigode bem aparado) e não me chamou de "senhora".

Eu já estava completamente apaixonada quando doutor Saulo me deitou na maca e, com mãos enormes —enormes mesmo; não sei se já escrevi isto aqui, mas eram mãos enormes—, passou a apalpar minha barriga. Acho que eu estava de olhos fechados, prestes a cantarolar uma prece, quando ele começou a bater com os dedos, de forma mais ritmada e seca, e concluiu: "Tá cheia de gases".

A dor de encarar aqueles olhos claros tão bem contornados por grossas sobrancelhas e responder: "Eu intercalo períodos de ‘cocô bolinha’ com períodos de ‘cocô cobrinha’".

Visto a roupa vagarosamente e prendo o cabelo em um rabo bem alto (me sinto mais jovem assim). Faço uma piada qualquer sobre ar-condicionado, insinuando que prefiro dormir quentinha. Ele morde a caneta (nessa hora eu estou tão abalada que aperto meus olhos com as mãos) e arranca a tampa com tanta pulsão de vida que meu sutiã se abre sozinho. Então ele me pergunta: "Você arrota muito?".

Bafo e Arroto, dragão de duas cabeças da série 'Como Treinar seu Dragão'
Bafo e Arroto, dragão de duas cabeças da série 'Como Treinar seu Dragão' - Reprodução

Esta crônica é para pedir à Associação Médica Brasileira que nunca mais na história permita que um gastroenterologista se pareça com a versão do Jake Gyllenhaal recém-chegado do verão em São Miguel dos Milagres. Já seria difícil responder um bom-dia a um homem desses, que dirá responder se você tem ou não muco nas fezes. Se você tem ou não um pigarro biliar pela manhã. Se você tem ou não fissuras anais ou hemorroidas.

"Abra a boca", ele diz. "Mais", ele diz. "Bem grandão", ele diz. Então doutor Saulo enfia a cabeça quase inteira ali dentro e conclui: "Sim, tem um refluxo importante".

Sobre gases, especificamente sobre eles, doutor Saulo quer saber mais e mais. Aquele homem, de beleza meio italiana, meio carioca, meio árabe, é um incansável no quesito flatulência: "Mas você solta?". Ainda tentando não sair de nosso joguinho de sedução, respondo com a voz ronronante: "Sempre que posso".

Quando tudo está perdido, eu chuto o pau da barraca e digo exatamente o que estava preparada para dizer a um senhor calvo e peludo de 65 anos de idade (assim eu imaginei o doutor Saulo). Conto que me tornei uma dessas pessoas, com estômago alto e intestino baixo, que eu via na praia e pensava: "Por que a abandonaste, Senhor?". Digo que me tornei uma dessas pessoas que ao usar calça jeans justa parecem ter uma pixocona que vai até o umbigo. Conto que ao longo do dia eu incho tanto que vou me transformando em um baiacu.

Doutor Saulo balança a cabeça. "Que nada, você é um peixe mais bonitinho, vai." Fico nervosa e, em vez de responder que "dou pro gasto", respondo que "dou pro gastro". Ele não percebe e escreve "colonoscopia com biópsia" no receituário. Tudo está perdido, eu penso. Mas falei em voz alta. "Tudo está perdido." Doutor Saulo diz que não, que "para a minha idade" estou ótima. "Ainda mais que a senhora fez uma cesárea e aparentemente não é muito dos esportes." Com mãos enormes, ele me dá amostras grátis de antigases em cápsulas de gel.

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